Não sei se os seguidores da épica fundação do único movimento subversivo e misterioso português que aterroriza a classe política com rabos de palha e duvidosa idoneidade e os abusos de poder praticados pelo Estado e organizações satélites igualmente lideradas por escroques rapados dos vadios sem eira nem beira que se acoitam nos partidos políticos sobre os infelizes e lixados cidadãos, o IRRA, já foram suficientemente espertos e argutos para deduzirem que o Al Trokas, o sr. Santos e o sr Costa moram no mesmo edifício, o inigualável e concorrido Lote 69, embora em fracções diferentes.
Aliás, os três fundadores do mais melífluo, cruel e activo grupo anti-sistema, e não só, têm um percurso de vida comum em várias fases da sua existência, desde a escola primária até à reforma antecipada por cansaço de tanto batalhar contra tudo e todos. Eles nunca foram de ficar de braços cruzados, resignados perante as injustiças e os vis assaltos à dignidade humana neste mundo cruel e ingrato, agindo sempre em defesa dos fracos e oprimidos, embora, aqui e ali, também tivessem feito as suas tropelias.
O Al Trokas, aos 11 anos, revoltou-se contra o monopólio das livrarias, tabacarias e quiosque que vendiam as revistas da Walt Disney. Um dia faltou às aulas de Francês no Liceu Passos Manuel para surripiar na Bertrand, no Chiado, um almanaque do Tio Patinhas. Saiu de lá com ele escondido debaixo da gabardina sebosa e esburacada que já viera de geração em geração, do tio mais velho e rico, porteiro na Fábrica Nacional de Sabões, aos quais por acaso era alérgico e banho só quando chovia a cântaros. O tio-avô usou-a trinta e dois anos até a ceder ao primo (filho do tio) e este, posteriormente, oferecê-la, a um outro primo ainda mais afastado e longínquo, sétimo filho na escala ascendente de uma prole interminável, 22 anos e sete meses depois. Isto no tempo em que uma sardinha era dividida pelo chefe de família, a mulher, 13 filhos, a avó, dois casais de tios, uma tia viúva e a vizinha -- fizera o favor de trazer uma bilha de água da fonte e deixara pastar o burro enquanto se enrolava numa meda de feno com um lavrador cuja mulher tinha fugido com o cabo da GNR do posto da terra e andava com uns calores e umas afrontas insuportáveis até as descarregar entre as coxas da prestável mulher que pacientemente esperava que o recipiente enchesse do indispensável líquido, entre gemidos e suspiros de alívio por lhe vasculharem as comichosas entranhas -- e ainda sobravam umas espinhas para o gato que apanhava roedores intrusos assaltantes das arcas do trigo. Por fim, uma eternidade decorrida, a gabardina lá foi parar ao definhado guarda-fato do petiz, agora um dos fundadores do implacável e desumano IRRA.
O que o pobre do Al Tokas não sabia de todo era que estava a ser perseguido pelo guarda discretamente à civil da Bertrand, um polícia reformado compulsivamente quando foi apanhado pelo sub-chefe em flagrante delito a angariar clientes para uma casa de passe do Bairro Alto. O prostíbulo, localizado no segundo andar por cima do Tacão, uma mal afamada casa de fados vadios com uma freguesia a condizer. Por lá vadiavam desde meninas trazidas das aldeias beirãs com promessas de servirem como sopeiras em ricas casas mas acabaram deitadas de barriga para o ar, entre outras posições menos convencionais, sufocadas com o peso de marinheiros há meses sem cheirar uma gaivota ou maridos já enjoados da "posição do missionário", sempre com a mesma pessoa. Onde já ia o tempo em que esses fiéis clientes juraram amor eterno e fidelidade canina para todo o sempre, anos antes, no altar onde trocaram alianças, às esposas e agora renegavam os monótonos leitos conjugais. Mas também por ali pululavam candidatos a Alfredos Marceneiros fadistas, chulos de crista empinada com brilhantina atentos à contabilidade das "protegidas" sobre colchas imundas e de tempos a tempos lá aparecia o guarda-nocturno de giro, sempre à espera de uma "borla" para fechar os olhos às inúmeras infracções à lei que gravitavam à sua volta.
O vigilante da Bertrand deitou a unha ao Al Trokas quando este tirou o almanaque do Tio Patinhas de dentro da histórica gabardina e arrebanhou-lhe o desejado troféu das mãos encardidas com a unhas pretas por andar a jogar ao berlinde no pátio do liceu com o menino Santos e o menino Costa mais o João Velha, um garoto também da turma, que o avó, um ex-general maluco que o fazia saltar da cama às seis da matina para o obrigar a fazer ginástica e depois tomar banho de água gelada, quer fosse Verão ou Inverno. Farto dos continuados protestos e birras do desgraçado neto, o intratável militar internou-o num colégio interno lá para os lados de Abrantes e desapareceu de circulação.
Al Trokas ainda se escapuliu das garras de urso do guarda privado da livraria do Chiado , mas, por azar, a gabardina ficou nas mãos grossas e sapudas do homenzarrão e ele não podia chegar a casa sem a veste que já fazia parte do espólio histórico da família. Entre uma sova monumental no lar doce lar e uma semana ou duas de castigo severo a dormir à porta, na escada escura embrulhado numa manta, e sem poder brincar com os amigos e entregar-se ao longo braço da Justiça, Al Trokas optou por esta segunda hipótese e foi levado por uma orelha até à livraria, onde prometeu que pagaria o malfadado mas desejado almanaque do Tio Patinhas. Mas revoltava-o (era já a semente do contra a germinar) ser obrigado a pagar sete escudos e cinquenta centavos para se deleitar com 100 páginas que faziam a alegria da pequenada.
No entanto, a longa noite do fascismo não permitia estas liberdades de pensamento e enquanto a avó comia as papas matinais fez um golpe de mão ao porta-moedas da velhota de onde não conseguiu mais que 3 escudos e 20 centavos. A situação dramatizava-se hora a hora mas a amizade dos meninos Santos e Costa prevaleceu e solidificou-se neste aperto. Os três, no dia seguinte, aproveitaram o intervalo das missas na igreja das Mercês, onde esteve enterrado o Marquês de Pombal até o cadáver "migrar" para outro sepulcro quiçá por falta de sossego naquele lugar com os cânticos missais, viraram duas caixas das esmolas até perfazer a quantia suficiente para pagar a revista dos desenhos animados e ainda sobrou o suficiente para um Olá fresquinho para cada um. Com o cadastro limpo, Al Trokas voltou ao liceu e às aulas da sua turma, onde foi aclamado como um herói por enfrentar a temida opressão salazarista. Afinal o que é um almanaque do Tio Patinhas comparado com os 10 mil contos que o revolucionário da LUAR, Palma Inácio, posteriormente deputado socialista após o 25 de Abril, que sacou de um banco da Figueira da Foz.
Voltando às actividade do agitado parto arrancado a ferros do IRRA. Após arrumarem os "dossiers" (ah pois é, "isto" é uma organização com cabeça, tronco e membros) da fundação, os estatutos, o hino e a bandeira do sinistro e camuflado grupo, houve que tratar da instalação de uma sede. Al Trokas, o sr. Santos e o sr. Costa moram sozinhos mas a desarrumação totalmente anárquica das respectivas casas não permite nem a instalação de mais um carregador de telemóvel.
Na esplanada do incansável Lelo, que forçava sorrisos amarelos avermelhados aos transeuntes na tentativa desesperada de angariar clientes para os seus menus magros em proteínas e gordos nos preços, Al Trokas, o sr. Santos e o sr. Costa procuravam nas páginas de publicidade dos jornais um apartamento para alugar e servir como sede do maléfico anti-corrupto IRRA. Porém, as atenções fixaram-se quase exclusivamente na foto de Nikoleta Lozanova, despida e sentada dentro de uma baliza, a namorada de um dos reforços do Sporting para esta época, o búlgaro Bojinov, uma pérola morena com mais curvas perigosas que a estrada do Marão, que augura muita agitação pelas bandas de Alvalade e não só.
Nessa altura passou por eles a Adelina, hóspede do 10º andar, o mais alto do Lote 69, com uma vista panorâmica de 360º. Esse magnífico apartamento tinha, porém, a fama de estar assombrado e a Adelina andava chupadinha das carochas, escanzelada, ar cadavérico, cabelos escorridos, roupa descuidada até aos pés para encobrir a pouca carne e os muitos ossos, a modos como os pratos servidos pelo Lelo, que se arrastava penosamente apesar de ainda não ter completado os 40 anos. Dizia-se que ela não dormia de noite devido aos acontecimentos extraordinários ocorridos naquela casa, desde portas a bater, armários a abrir e a fechar portas e gavetas sozinhos, livros a voar pela sala, móveis a mudar de local, tapetes voadores como no filme "O Ladrão de Bagdad", sombras estranhas e arrastar de correntes. Contou a porteira a alguém que depois também deu à língua, que viu o último namorado da Adelina a sair do prédio numa corrida louca, com uma peúga calçada na pé esquerdo, as cuecas pelos joelhos, o "berimbau" a dar a dar, a gravata ao pescoço e o casaco e as calças debaixo do braço, depois de apanhar um valente cagaço quando estava no sofá com ela a tentar consumar um acto supostamente sexual por entre os ossos daquele cúmulo da magreza e deu por ele a satisfazer-se num funil que viera da cozinha sorrateiramente guiado pelo sobrenatural, ao mesmo tempo que uma espátula dos bolos caseiros lhe açoitava violentamente o traseiro sem que se visse mão alguma segurá-lo.
O Anacleto, nome do amante da acima descrita era casado, mas a mulher estava há sete anos com um destrambelhamento nervoso tão grave que cada vez que o marido lhe tocava desatava em alta gritaria que despertava metade da Brandoa, onde vendia carros usados a imigrantes ilegais. Os veículos eram já tão gastos que uma vez levou uma facada de um ucraniano que ficou sentado na estrada quando o chão do podre do Opel Ascona cedeu numa curva à entrada de Odivelas e o pobre homem do Leste foi com o rabo a arrastar pelo alcatrão em mau estado mais de duzentos metros até embater na montra de uma agência funerária. Ficou internado dois meses no hospital a fazer transplantes sucessivos de carne das pernas para o traseiro para lhe recomporem minimamente o rabo. Pois então, o Anacleto saiu tão desvairado e aterrorizado do sinistro 10º andar que em vez de entrar no seu carro, um Hyundai vermelho todo polido para disfarçar a mossas, meteu-se num outro veículo vermelho completamente diferente, um BMW Série 3 da mesma cor, caindo no colo da Guida do 1º andar que estava com a língua enfiada na boca do Acúrsio, um gabiru que falhou a carreira de profissional de futebol no Belenenses para se amancebar com uma mulata de Rio de Mouro. Meses depois, ela correu com ele de casa porque o futebolista falhado tinha mais garganta que pedalada para a levar às nuvens. Como ele não queria sair lá do quentinho, nem a ajudava a pagar as contas, a mulata fez-lhe um caldo de galinha preta com um molho embruxado por umas rezas ensinadas por uma vizinha do Senegal, de onde fugira acusada de feitiçaria. O Acúrsio viu o Anacleto pelado em cima da sua paixão ocasional e enfiou-lhe com a chave de ignição pelo nariz acima. Ele saiu a correr, a sagrar, nu, esqueceu o carro e só parou na estação ferroviária Queluz-Belas, onde seria detido por uma patrulha da PSP, que o levou para esquadra para investigar qual o motivo porque não vestia a roupa que trazia debaixo do braço.
Nunca mais se viu ninguém estranho em casa da Adelina e constava que ela devia vários meses de atraso à senhoria, a Xana, uma espampanante loira de olhos verdes e bem apetrechada de corpo o suficiente para ir sacando uns andares a uns empreiteiros e patos-bravos em troca de umas voltas e reviravoltas nos colchões de água, a sua grande perdição, além de andares, apartamentos e vivendas.
Al Trokas, o sr. Santos e o sr. Costa sempre se deram muito bem com a Xana, mas não posso afirmar que também se envolveram com ela porque não tenho provas consistentes do que esses rebeldes anarcas andaram a fazer com a sedutora quarentona até altas horas da madrugada.
Os três revolucionários olharam uns para os outros e segredaram algo de estranho, presumo que um plano diabólico que só poderia sair daquelas cabecinhas altamente perigosas.
Nessa noite, juntos às enormes e deslumbrantes janelas do 10º andar panorâmico, à qual se podia aceder através do terraço, vislumbravam-se três vultos brancos, que arrastavam correntes e de uma fresta de um dos capuzes brancos via-se um pífaro do qual saiam uns sons prolongados e agudos. Ao mesmo tempo observava-se através das vidraças a silhueta saltitante e nervosa da Adelina, com uma lanterna na mão. Muito esporadicamente, focava uma daquelas misteriosas figuras brancas. A mulher entrou em histeria quando por uma fresta da janela jorrou um jacto de sangue. Aí largou a lanterna, sumiu-se das vistas, e na manhã seguinte encontrava-se uma camioneta de mudanças estacionada frente à fachada do Lote 69. Durante horas, os elevadores transportaram haveres de toda a espécie do 10º andar para o veículo pesado.
"Bom dia"-- saudou Al Trokas quando na tarde seguinte encontrou o sr. Santos na esplanada do Lelo -- dormiste bem?"
"Bom dia, dormi muito bem e tu?", respondeu o amigo, com um sorriso enigmático.
"Já chegaram? -- era a voz (muito animada) do sr. Costa -- hoje madrugaram, ainda não são seis horas". Da tarde, claro ! Normalmente apareciam por ali às sete e não perguntem o que eles fazem até essa hora porque nenhum deles se descose.
"Não te esqueceste de nada, Costa? -- perguntou asperamente Al Trokas.
"Não, companheiro, trago aqui o saco com os lençóis para entregar à Dª Maria", retorquiu, franzindo a testa pensando no que teria deixado de fazer para lhe chamarem a atenção daquela maneira.
"Bom dia, não te diz nada?" -- recordou-lhe o Al Trokas.
"Ah pá, desculpa, Bom dia!" (a senha de reconhecimento dos componentes do IRRA), disse rapidamente o sr. Costa.
"Bom dia" (contra-senha), retribuíram os amigos.
"Está tudo a correr bem, tu trouxeste os lençóis brancos que a Dª Maria nos emprestou, eu tenho aqui as correntes dos cães da Patrícia para lhe devolver e tu, Santos, o pífaro do sr. Telmo, não te esqueceste, pois não?", interrogou Al Trokas"
"Não me esqueci nada, está aqui o pífaro embrulhado no "Record", Trokas", informou o sr. Santos.
O Lelo veio à porta limpando as mãos ao avental gorduroso e perguntou-lhes:
"Então, seus velhos do caraças, conseguiram fazer o arroz de cabidela com o sangue que lhes dei ontem?".
"Ó, tangas, ficou melhor do que feito por ti, explorador da fome alheia", disse-lhe o Al Trokas, divertido.
Todos se calaram quando um imponente Lexus azul escuro parou em frente e saiu dele uma voluptuosa loira curvilínea. Era a Xana. Trazia uma chaves na mão. Beijou os três amigos do IRRA e depois colocou umas chaves na mão do Al Trokas.
"Meu querido, agora és o responsável pelo 10º andar".
O IRRA dispunha da sua sede.
Lençóis? Correntes de trelas para cão? Pífaro? Sangue de cabidela?
Será que os três malandros do IRRA tiveram algo a ver com a fuga precipitada da Adelina?
Nunca o saberemos...O IRRA é um túmulo cheio de segredos fantásticos.
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