terça-feira, 12 de julho de 2011

A secretária do IRRA (capítulo 1)



O IRRA esteve inactivo 24 horas. Não para descansar ao sétimo dia que por aqui essas mordomias burguesa-corruptas não são permitidas pelos estatutos da organização ferozmente anti-tudo-e-todos mas porque o Al Trokas andava irrascivelmente irado por lhe ter faltado o tabaco antes de se ir deitar, na outra noite antes desta...Ou na anterior...Bem, para o caso tanto faz. Também não sejam picuínhas que eu não sou o rato de bibliotecas do Fernão Lopes. O homem, que até andava calmo e sereno, como Cavaco Silva com o país a escorregar pelo abismo financeiro e em riscos de se estatelar com os costados na "lixeira" cavada pela Moody's, ficou pior que uma fera enjaulada, muito mais agressivo que José Sócrates quando o antigo primeiro-ministro espezinhava verbalmente os adversários políticos na Assembleia da República, quando ia fumar um cigarro sentado na retrete já preparado para se esticar na cama para um merecido descanso no final de um dia apocalipticamente revolucionário. 
Após 1428 voltas à casa a desarrumar sofás, móveis, prateleiras, frigoríficos, máquinas de lavar, arcas congeladoras, mesas, cadeiras e camas sem cheirar um cigarrinho que fosse, Al Trokas ligou para o Lelo, o desenho animado tipo sapo Cocas  e semi-falido dono do café-restaurante "Dentada".  Atendeu a mulher, que, com a voz melada de sono e das bolachas de chocolate que devora como uma doida para atenuar as carências da falta de atenção do vadio do marido, dizendo "o Lelinho não está". 
"O Lelinho não está, o Lelinho não está", resmungava Al Trokas atirando um pontapé num cabeça de cavalo em gesso oferecido com uma dedicatória de "amo-te para sempre" gravado na base pela Catarina, uma gorda mas  atraente morena incansável e insaciável por "aquilo" que "todos os bichinhos gostam", secretária de Administração de um empresa de comunicações, lugar que preencheu depois de passar pelas mais diversas camas, desde o espertalhão do estafeta, o Reinaldo, um quarentão mais sabido que um burro velho (ah julgavam que esses orelhudos de quatro patas eram burros mas estão muito enganados) ao leito de um quarto de motel espelhado ali para os lados de São Brás, onde foi obrigada a usar de todas as suas habilidades para fazer erguer a velha e decrépita virilidade do Dr. Domingos, para se sentar no lugar que hoje ocupa. A Catarina, cuja alcunha era, e é, "Apita o Comboio", por motivos mais que óbvios, era de tal maneira devassa e viciada que vinha em excesso de velocidade de Lisboa a Queluz "dar uma curva" com o Al Trokas. Num desses intervalos para almoço, a esfomeada, extenuada de saltitar de colchão em colchão, caiu redonda sobre o inconformado co-fundador do IRRA quando "brincava aos cavalinhos" com o atrás citado e ficou desnuda, inerte, com os olhos revirados a respirar ofegantemente nos seus braços. Al Trokas ainda ligou para a secção local da Protecção Civil, onde (faz que) trabalha  a púdica Dª Rosa, já nossa conhecida, mas, mesmo omitindo alguns pormenores mais picantes sobre a origem da "doença" da desfalecida, a chefe de turno daquele instituto público corou violentamente e ficou a arfar e a abanar-se agitadamente com uma capa de plástico A4 com a inscrição República Portuguesa - Mensagens secretas, hesitando entre chamar o bombeiros para a morada indicada ou ligar para o Hélio, um antigo namorado que não via há 12 anos, desde que fugira com uma professora para Braga mas já voltara ao Casal de São Brás quando ela se fartou de passar os sábados e os domingos a aturar os jogos de futebol na Sport TV que ele devorava alapado ao sofá, para ele lhe aliviar daquela fornalha ardente que a consumia desde que o Al Trokas lhe forneceu algumas informações sobre o que estava a acontecer num andar sossegado (mas não muito) do Lote 69 a meio do dia. Felizmente a Catarina recuperou enquanto Al Trokas e a Dª Rosa estavam ao telefone a combinar um meio rápido de socorro, mas a "vitíma" apareceu na sala já refeita, sorridente e mais carinhosa e dengosa que nunca, envergando apenas a pele morena e passando as mãos pelos cabelos curtos e negros como breu. Passou provocadoramente a língua pelos lábios e perguntou numa voz muito baixa e melada: "Aconteceu alguma coisa? Por que fugiste da cama, meu tigre da Arábia?". Queria dizer da Malásia, que tigres na Arábia é como encontrar camelos no Pólo Norte", mas, enfim, ninguém é perfeito e cada pessoa nasce para o que é. 
O Al Trokas, como descrevia há uns parágrafos atrás, fora de si pela falta de cigarros, deu um pontapé na cabeça de cavalo de gesso e apesar de estar descalço o objecto voou à velocidade da luz contra um jarrão chinês XXL, postado no hall de entrada da sua fracção, desfazendo-se em mil pedaços na tijoleira do chão, provocando uma barulheira semelhante à de um prédio a desabar com um terramoto de 9,3 da escala de Richter, estardalhaço amplificado um ror de vezes no silêncio pacato e sereno de uma noite morna de Quarto Crescente. 
O vizinho de baixo, um tipo misterioso e deprimido que se enfiou em casa, deixou de trabalhar desde que a mulher o deixou e só sai à vida pública para ir buscar alguma coisa que se coma à churrascaria no fim da avenida, meteu finalmente o nariz fora da porta, sem ser para ir buscar o frango assado com molho de piri-piri, e bateu à porta do Al Trokas com aquele ar infeliz que só os homens cujas mulheres fugiram sem avisar e nem deixar um simples bilhetinho com a palavra "adeus" têm e perguntou, muito timidamente em voz sumida: "Ó vizinho, aconteceu alguma desgraça?"
"Claro que aconteceu, porra, não tenho cigarros, merda, você fuma?", explodiu o Al Trokas, dando um pontapé num caco do valioso jarro chinês no tempo em que não havia, lojas desses gajos cá em Portugal e as peças do Oriente eram valiosas e proporcionavam um certo estatuto e não eram sinónimo de pelintrice foleira com actualmente. O destroço passou a rasar a orelha do furtivo vizinho em pijama, que se escapuliu rapidamente para a segurança do seu refugio ao verificar que Al Trokas estava decidido a aparecer na primeira página do "Correio da Manhã" entre as centenas de criminosos que diariamente se acotovelam na capa daquele matutino. 
Al Trokas foi bater à porta do sr. Santos mas respondeu-lhe um silêncio confrangedor. O sacana do amigo tinha saído com uma tipa meio maluca do prédio da farmácia, uma matrona que tinha a mania de empurrar os carros mal estacionados com o jipe do estacionamento do seu prédio para o meio da rua, onde os deixava ficar estacionados sem conhecimento do dono. Por duas vezes ocorreram acidentes com esta brincadeira mas ela safava-se sempre de problemas com a Polícia porque era frequente  o dono da farmácia fazer-lhe uma visita às duas da manhã  para lhe dar uma ou duas "injecções" de produtos naturais...Enquanto o Al Trokas tocava desesperadamente na campainha da porta do sr. Santos, este encontrava-se no parque de estacionamento da praia de Carcavelos dentro do Renault Clio da serigaita, com ela ao colo e a cabeça com os cabelos castanhos escuros ao vento e os olhos cerrados para melhor saborear as delícias e os espasmos do momento. 
Da fracção do sr. Santos, Al Trokas subiu à fracção do sr. Costa, o amigo e terceiro elemento do inapelável IRRA. A campainha rugiu como um carrilhão na placidez da madrugada. Uma, duas, três...dez, onze vezes. Nada. Nem um murmúrio lá de dentro. Abriu-se a porta do lado oposto do piso onde reside um casal de Testemunhas de Jeová. O marido de pijama às riscas e esquelético como um sobrevivente de Treblinka e ela dois palmos malta e 43,865 gramas mais forte procuraram saber o que eu pretendia àquela hora e com o reboliço que estava a enervar todo o Lote 69. "Têm cigarros?", perguntou asperamente Al Trokas. "Não fumamos", responderam ao mesmo tempo e fecharam logo a porta anti-roubo e blindada, quando viram, atemorizados, o ideólogo do IRRA dar um pontapé num cacto viçoso, indiferente aos picos que se cravaram nos pés calejados por milhares de quilómetros descalços nos rochedos graníticos  e dos terrenos lavrados pejados de restolho do trigo acabado de ceifar nas longínquas paragens da Beira Baixa e mais tarde nos caminhares intermináveis com botas da tropa por serras e matas de aquém e além mar. 
O javardo do sr. Costa também se escapulira nessa noite do Lote  69 sem avisar os amigos. Não estava longe, o patife.  Tinha combinado,  subrepticiamente, uma jantarada em casa da cabeleireira que lhe cortava as unhas dos pés e lhe aparava as farripas de cabelos e as apalpadelas no rabo empinado quando não estava nenhum freguês ou freguesa presente no estabelecimento. A Raquel era fininha, 36 anos bem vividos, cabelos compridos sempre segundo os regulamentos da moda, olhos grandes, nariz de judia, lábios finos numa boca grande e prometedora, mãos delicadas e suaves como veludo, cintura de vespa transmontana do concelho de Miranda do Corvo, pernas feitas não por Deus mas por um estilista tipo John Galliano  e vestia-se de um modo escandalosamente provocante, nunca se sabendo se estava meio vestida ou meio despida. 
Após um jantar à luz de velas no 3º andar da galdéria da cabeleireira em que o sr. Costa se alambazou com uma feijoada de gambas depois de uma sopa de marisco com pão torrado e antes de um semi-frio de chocolate com natas, que fariam corar de vergonha o Lelo e as suas sopas aguadas, peixes pré-putrefactos com odor a fénico e carnes provenientes das mais provectas vacas, porcos e borregos, os dois encaixaram-se na carpete farfalhuda à luz bruxeleante que iluminavam as posições do kama sutra e da saudosa revista "Gina" ao vivo e a cores esbatidas mas muito activas...
Farto e cansado de subir escadas e andar pela rua deserta à procura de um rufia qualquer que lhe fizesse o obséquio de lhe dar um mais que desejado cigarro, Al Trokas, desanimado, deprimido mas capaz de ir às ventas ao primeiro que lhe desse as "boas noites" mas não tivesse cigarros, enfiou-se no elevador. A noite, no entanto, era mesmo azarada. O elevador encravou entre o 2º e o 3º andar. O malvado do Schindler, que ainda há duas semanas fora reparado por um mecânico de sobe-e-desces suspeito da Pontinha, não tugia nem mexia. E Al Trokas, claustrofóbico desde uma cena macaca em que ficou soterrado e da qual se salvou por obra e graça de um cão do Exército, berrou, esmurrou e pontapeou a porta, premindo o botão de alarme até este ficar enterrado no buraco do painel de comando, provocando um escarcel tal que, quem ainda não acordara com a agitação  do Lote 69 até então, despertou abruptamente para não mais pregar olho até ser hora de sair de casa. 
Mas quem não saía nem por nada de dentro do acanhado elevador era Al Trokas. A porteira estava de férias e não lhe podia acudir. Os outros condóminos do prédio não se encorajavam a ir à escada investigar a origem da turbulência nocturna. Os bebés do 1º, 3º, 4º, 7º e 8º andares berravam desalmadamente, os cães do 1º, 2º, 5º,6º e 9º andares ladravam e ganiam com todo o fôlego canino. As luzes de todas as fracções acenderam-se. O pandemónio dos berros, murros e pontapés do Al Trokas encarcerado, os uivos dos cães e os choros convulsivos dos bebés faziam estremecer o Lote 69 e as suas grandes vidraças exteriores. Às 8h07 da manhã, finalmente os bombeiros abriram o raio da lata prisional de onde saiu um Al Trokas completamente destroçado pela noitada infernal e as atrocidades que o destino lhe guardou para essas horas de desespero. Só o seu estoicismo revolucionário lhe permitiu resistir. 
"Tem um cigarro?", perguntou Al Trokas ao bombeiro-salvador. "Não fumo", respondeu este, "Mas olhe que o café já abriu porque vi o dono a levantar as grandes e estava a fumar um charuto", informou o soldado da paz. Al Trokas reuniu as últimas forças e, mesmo descalço, em cuecas e de t-shirt entrou pelo café do Lelo dentro como um furacão e arrancou-lhe o longo charuto da boca perante a estupefacção do dono da "Dentada". Quando toda a gente do Lote 69 foi mal dormida e rabugenta para o trabalho, Al Trokas subiu, a pé pelo sim pelo não, até á sua casa cheia de cacos chineses por todo o lado, mas indiferente a esse caos, sentou-se no sofá, fumando avidamente o precioso charuto. Depois adormeceu. 

(Esgotado, este capítulo continua amanhã...ou depois...uffff !)

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